O
dia estava lindo, um sol radiante e uma temperatura agradável convidaram-nos ao
nosso segundo encontro. Meninas de cabelos soltos andavam leves pelas calçadas
tortuosas rumo a um espaço harmonioso, perto da escola. Sentadas em círculo, retomamos
o que foi dito na última reunião, questionamos comentários feitos, as histórias
trocadas entre sorrisos e lágrimas, o que foi observado ao seu redor durante os
sete dias que nos separaram do encontro anterior. Nossas histórias se
transformaram porque foram retomadas, recontadas.
Abrimos
os debates após a leitura crítica do texto “A função perversa dos contos de
fadas” de Regina Navarro Lins, sobre a construção simbólica de ideais ditos
femininos abarcados nas histórias de contos de fadas – esses relatos de príncipes
corajosos e princesas submissas que permeiam o imaginário feminino desde a mais
tenra infância. Várias dúvidas surgiram após um debate caloroso, pois negociar
significados é tarefa dolorosa, ninguém quer abrir mão do que valorizou toda
uma vida. Nossos ideais são pérolas preciosas e é necessária muita coragem para
desfazer-se das que necessitam ficar para trás.
Impossível
mensurar pedagogicamente as sementes que plantamos naquele instante, pois as
vivências são múltiplas e os resultados inesperados. Mas acreditamos que o
processo educativo se fez nas palavras amigas, no compartilhamento das
sujeitas, na soma de suas perspectivas.
Num
processo contínuo de fazer-se, nós, as mulheres, reafirmamos ideais mais
nossos, únicos e individuais. Constituimo-nos de roupagens mais maleáveis, não porque
estamos à espera de um príncipe encantado messiânico, mas porque estamos ávidas
por uma história própria, constituída em escolhas livres.
A
função perversa dos contos de fadas
Regina Navarro Lins
Não tenho dúvidas de que os
contos de fadas são prejudiciais às crianças. Mas será que pais e professores
se dão conta disso? Será que percebem quais tipos de ideias estão passando para
as crianças, subliminarmente, por meio desses contos? Cinderela, Branca de Neve,
Bela Adormecida. Modelos de heroínas românticas, que, ao contrário do que se
poderia imaginar, no que diz respeito ao amor, ainda são parecidas com muitas
mulheres de hoje. Mas isso não é à toa.
Desde a Antiguidade as mulheres
detinham um saber próprio, transmitido de geração em geração: faziam partos, cultivavam
ervas medicinais, curavam doentes. Na Idade Média seus conhecimentos se
aprofundaram e elas se tornaram uma ameaça. Não só ao poder médico que surgia, como
também do ponto de vista político, por participar das revoltas camponesas. Com
a “caça as bruxas”, no século XVI, 85% dos acusados de feitiçaria eram mulheres.
Milhares delas foram executadas, na maior parte das vezes queimadas vivas.
Segundo os manuais usados pelos
inquisidores, é pela sexualidade que o demônio se apropria do corpo e da alma
dos homens, dominando-os através do controle e da manipulação dos atos sexuais.
Não foi assim que Adão pecou? Como as mulheres estão essencialmente ligadas à
sexualidade, elas se tornam agentes do demônio (as feiticeiras). Rose Marie
Muraro na introdução do livro "O martelo das feiticeiras", escrito
por dois inquisidores em 1484, chama a atenção para um detalhe importante: “eram
consideradas feiticeiras as mulheres orgásticas e ambiciosas, as que ainda não
tinham a sexualidade normatizada e procuravam se impor no domínio público
exclusivo aos homens”.
A partir daí podemos entender
melhor como as mulheres e as personagens femininas das histórias infantis foram
se tornando passivas, submissas, dóceis e assexuadas. Em "Cinderela",
"Branca de Neve" e "A Bela Adormecida" existem algumas
mulheres que até fazem mágicas, mas a mensagem central não é a do poder
feminino, e sim da impotência da mulher. O homem, ao contrário, é poderoso. Não
só dirige todo o reino, como também tem o poder mágico de despertar a heroína
do sono profundo com um simples beijo.
Além da incompetência de lutar
por si própria, comum às principais heroínas, Cinderela é enaltecida por ser
explorada dia e noite, trabalhando sem reclamar e sem se rebelar contra as
injustiças. Padece e chora em silêncio. Seu comportamento sofrido, parte do
treinamento para se tornar a esposa submissa ideal, é recompensado: seu pé cabe
direitinho no sapato e ela se casa com o príncipe.
No entanto, o mais grave nos
contos de fadas é a ideia de que as mulheres só podem ser salvas da miséria ou
melhorar de vida por meio da relação com um homem. As meninas vão aprendendo, então,
a ter fantasias de salvamento, em vez de desenvolver suas próprias capacidades
e talentos. As heroínas das histórias estão sempre ansiosas em fazer o máximo
para agradar ao homem, ser como ele deseja, e acreditam que adequar seu corpo à
expectativa dele é fundamental. Não se esqueça de que Cinderela e todas as
moças do reino tentam se ajustar ao sapatinho encontrado pelo príncipe — a
madrasta orienta as filhas a cortar um pedaço do pé para corresponder ao que o
homem espera delas.
A historiadora americana Riane
Eisler afirma que “essas histórias incutem nas mentes das meninas um roteiro
feminino no qual lhes ensinam a ver seus corpos como bens de comércio para
conseguirem pegar não um sujeito comum, mas um príncipe, status e riqueza. Em última
análise a mensagem dos ‘inocentes’ contos de fadas, como Cinderela, é que não
somente as prostitutas, mas todas as mulheres devem negociar seu corpo com
homens de muitos recursos”.
Em vez de desenvolver suas
próprias potencialidades e buscar relações onde haja uma troca afetiva e sexual,
em nível de igualdade com o parceiro, muitas mulheres se limitam a continuar
fazendo tudo para encontrar o príncipe encantado. Ao invés de desenvolver suas
próprias capacidades, meninas aprendem a esperar pelo “homem salvador".